Pessoalidades

Quando eu percebi que estava em um relacionamento abusivo

Este foi o post mais difícil para ser escrito. Demorou meses para ir ao ar porque eu não me sentia segura o suficiente para escrevê-lo abertamente. Eu até tinha mencionado no primeiro post deste ano sobre a dificuldade que eu tinha em publica-lo, mas hoje, meses depois, sei que ele é necessário.

Muitos de nós sabemos que vivemos numa sociedade extremamente patriarcal e machista — e outros muitos não se dão conta disso, de tão enraizado que estão os conceitos. Eu era uma dessas pessoas, até que minha mente foi abrindo aos poucos, graças ao movimento feminista que começou a ter voz com mais intensidade na mídia no final de 2014 e início de 2015, que foi quando comecei a ter contato direto com quem é do movimento. Isso me salvou de tal forma como eu nunca podia imaginar, e depois de começar a ler mais sobre isso e ver vídeos, eu comecei a entender. E então pude me identificar: eu estava em um relacionamento abusivo. Isso me assustou absurdamente e eu não conseguia admitir. Mas os sinais me falavam absolutamente ao contrário.

Destaco aqui que relacionamento abusivo não necessariamente acontece apenas entre homem e mulher. Acontece com pessoas de qualquer gênero e orientação sexual. Mas não podemos negar a clássica imposição do homem sobre a mulher diante de uma sociedade na qual vivemos. E é nesta situação a qual me encontrei e relato (e é por isso que menciono sobre o feminismo), mas os sinais servem para qualquer pessoa que se encontra neste tipo de relacionamento.

Eu não queria acreditar que eu me encaixava nessa situação. Parecia ilógico. Demorei alguns meses para conseguir acreditar que aquela sensação de que havia alguma coisa errada no meu relacionamento era uma sensação real. Uma pulguinha atrás da orelha que me atormentava nos últimos dois anos que eu fazia questão de ignorar, porque para mim era bem óbvio, era coisa da minha cabeça — só que não — e assim seguia meus dias como se nada estivesse acontecendo. E depois de começar a entender a minha realidade, a pulguinha começou a virar uma sirene quase ensurdecedora. E, além de tudo isso, eu ainda tinha aquela sensação de estar presa a ele de alguma forma, jurando que o amava (e que o sentimento era recíproco), cheia de esperança de que as coisas melhorariam algum dia.

Quando eu percebi que estava em um relacionamento abusivo - madlyluv.com

Foto por Christa Lind

A verdade é que eu me anulei. Abafei a minha intuição. Me submeti a várias coisas das quais eu não concordava só para evitar brigas. Eu não podia sair com meus amigos sem provocar uma briga, porque ele não confiava. Não podia vestir uma roupa um pouco mais decotada ou saia mais curta sem receber uma insinuação de que isso era roupa de "cachorra" (??), porque assim os outros homens iriam olhar para mim e isso era inaceitável, que eu fazia isso para chamar a atenção. Se eu fosse sair sozinha eu tinha que falar a hora que chegava e a hora que saia, porque ele queria saber se eu estava bem (será?). Chegou a um ponto de eu precisar ocultar coisas banais do meu dia-a-dia por medo de represália, como almoçar com colegas de trabalho quando eu precisava dobrar horário no serviço, por exemplo. Se algo saísse fora do esquema dele, eu já podia esperar pelos insultos, pela voz alta, grosseria, xingamentos e repressão.

Eu aceitava que eu era a culpada por diversas situações, das quais não fazia sentido algum. Eu passei a acreditar que eu era uma pessoa ruim, fraca, dependente, que deveria me sentir bem em ter alguém que me aceitava por ser assim. Eu dava razão a ele. Como eu poderia achar isso ruim? Afinal, eu era culpada e ele ainda continuava comigo… olha só o quanto ele me amava.

Infelizmente foi preciso uma situação extrema para eu começar a agir. Quando ele decidiu que iria morar fora do país, trabalhar e viver o sonho dele, eu escolhi ficar — e essa decisão foi tão difícil a ser tomada quanto aceita. "Como que você foi deixar ele ir sozinho?" "Ah, mas a Ana Flávia tinha que ir junto, né?" "Ué, por que você não foi?" "Ele está indo por você, fazer o pé-de-meia para o futuro de vocês." Tão fácil falar… Depois de muito custo consegui ter alguma voz para dizer que queria ficar. E então o combinado foi: eu esperaria ele se estabilizar por lá (que poderia durar anos) enquanto eu esperaria aqui, para que quando eu fosse já seria para me casar.

Enquanto ele estava lá fora e eu aqui, o controle começou a piorar. Além de me sentir sozinha, tive a sensação de que estava mais presa ainda. As cobranças via celular começaram a intensificar, e um minuto sem responder no chat era motivo de desconfiança. "Por que você demorou tanto para responder?" "Tem coisa errada ai" "O que você está fazendo?" "#$%@&*, vai me responder, não?" "Aham, sei…". Chegou a um ponto que eu me sentia na obrigação de mandar fotos de onde eu estava para comprovar o que eu estava fazendo.

Enquanto tudo isso acontecia, eu ficava me perguntando como eu iria viver um sonho que nunca foi meu. Como eu poderia ir se eu na verdade não queria de forma alguma? Como que eu poderia ir morar num país que eu não conheço absolutamente nada, nem ninguém e sabe-se lá até quando moraria ilegalmente? E se fosse presa por estar ilegal? Como eu iria ao médico já que eu não seria uma cidadã e não teria como ter um plano de saúde para me consultar periodicamente e fazer exames devido aos meus problemas de saúde? Como eu abandonaria toda minha família, carreira, emprego e amigos para ficar ao lado de alguém do qual eu sentia lá no meu âmago que alguma coisa estava errada e não era de agora? Nunca me perguntaram o que eu achava de tudo isso. Nunca deram o devido valor a todos os meus questionamentos, meus medos. Aliás, nem eu conseguia dar valor para o que eu sentia. Eu não tinha voz o suficiente. Eu só tinha que aceitar, porque "Morar lá fora seria a salvação de nossas vidas neste país de merda", e a "sortuda" seria eu, já que eu só ficaria em casa o dia inteiro (!!!) trabalhando nos meus freelas que viriam do Brasil.

A verdade é que este relacionamento já tinha deixado de ter amor há muito tempo. Ora, amor não faz sofrer assim, não oprime, não ofende, não diminui, não prende nem desvaloriza. Sei que ele não tinha intenção de fazer o que fez, e confesso que às vezes me pego julgando este pensamento, questionando se isso é desculpa de amenizar os danos, como sempre fiz em todo o relacionamento. Mas é como eu disse no primeiro parágrafo: muitas pessoas não se dão conta do quanto o machismo está enraizado, cresceram achando que esses valores são os certos e pronto. Elas reproduzem o machismo de forma muito automática e muitas vezes não se dão conta do que realmente estão fazendo, chegando ao ponto de perder a capacidade de empatia pelo próximo. Desconstruir isso não é nada fácil. Muitos vão achar que o estou dizendo aqui é um absurdo, que estou exagerando, me fazendo de vítima ou até mesmo sendo coisa da minha cabeça (alô gaslighting).

O choque da realidade logo após o término me fez entrar numa situação a qual eu sentia ódio de mim mesma por ter aceitado tudo isso por tanto tempo, misturado com uma sensação de liberdade e medo dele voltar para o Brasil e bater na minha porta. Me sentia culpada por ter permitido tudo isso, perguntando-me porque que eu não dei um ponto final nisso tudo antes. Até que eu percebi que me culpar e me odiar não me levaria a lugar algum. Eu tinha que seguir em frente. Fui melhorando no meu tempo — e uma das formas que encontrei de melhor foi cortar totalmente o contato com ele, bloqueando-o em todas as redes sociais, e-mail e telefone.

Até hoje tenho sequelas, e não nego isso. Ainda sou uma pessoa insegura e que ainda pede desculpas por situações das quais não tenho um pingo de culpa. Ainda me emociono ao receber um elogio sobre algo de minha personalidade do qual um dia já duvidei. Vivo me policiando diariamente e aprendendo a impor a minha opinião. Ainda estou no estágio de recuperação, e imagino que ele será longo.

Eu jamais me atentaria à realidade se eu não tivesse tido ajuda direta de amigos e indireta — através de relatos nas redes sociais, vídeos, artigos e blogs feministas — assim como eu não conseguiria me reerguer se não fosse ao me espelhar em quem enfrentou a mesma situação que eu. Não sei se eu me sentiria bem se eu não tivesse ajuda. Capaz que até reataria o namoro. E é por isso que criei coragem ao escrever este post, pois tenho a esperança de que meu relato ajude mais alguém a sair de um relacionamento deste tipo. Espero que a minha história ajude alguém a perceber os sinais, que jamais deve ignorar a própria intuição. Sempre sabemos quando há alguma coisa errada, e é preciso se questionar e tentar enxergar o motivo dessa sensação, porque ela não é à toa.

O movimento feminista me ajudou a sair de uma vida infeliz, da qual eu achava que não tinha muita escolha. Mas eu tenho escolha (e sempre terei) porque aprendi a lutar pelo meu espaço e pela minha voz. Eu escolhi ser feliz, livre e independente. Nós temos o direito de lutar, de ser feliz através de nossas próprias escolhas, que jamais temos que aceitar imposição de alguém ou por uma sociedade que acha que somos menores.

E ainda tem gente que fala que não precisamos do feminismo.


Editado em 15.05.2016

Gostaria muito de agradecer a todas as pessoas que me deram apoio depois que publiquei este post, principalmente a todas que comentaram aqui e o compartilharam, com comentários cheios de palavras de força. Vocês não fazem ideia do quanto fiquei feliz e amparada por todos vocês! Não estamos sozinhas. 😍


Comentários

  • Carla Nascimento

    Acho que tu é a única pessoa que consegue me fazer ler textões, hahaha. Mana, senti no fundo da alma seu texto. Porque a gente não sabe, não percebe e ai quando começa a perceber, acha que está imaginando coisas. Mas não é nossa culpa, somos condicionadas e eu fico feliz por você ter se libertado e estar feliz agora. Me orgulho de você, mais ainda agora, obrigada por ter aberto a história pra gente, espero que ajude muitas manas ?

  • Cíntia de Melo

    Que muitas outras meninas tenham essa coragem.
    Que esse texto ainda inspire muitas outras mulheres.
    Você é uma vencedora =)

  • Gabriela Brasil

    Guria, que força em postar isso para o mundo! Também sofri em um relacionamento abusivo e até hoje não consigo falar sobre isso, e ainda me culpo por ter insistido tando em algo que me machucava! Fico feliz que você encontrou o feminismo e que ele te ajudou tanto! Mil beijos!

    • Aninha

      Tudo há seu tempo Gabriela ♥ temos que agradecer que acabou e lembre-se: nunca foi sua culpa!

      Beijocas!

  • Carol Rocha

    Que maravilha de post! Me identifico muito com a sua situação… meu relacionamento anterior foi bem assim, e acabei noivando por não saber me impor num relacionamento abusivo… só agora, muito tempo depois fui procurar ler mais sobre o feminismo e tive essa mesma sensação de "como consegui viver isso por tanto tempo?" Seu post me tocou muito!

  • Maria Venancio

    Aninha teu relato tocou profundamente em meu coração e fez eu perceber que diversas vezes tive em relacionamentos abusivos, mas que não chegou a esse ponto pois sou muito descarada.
    Pelo o que pude perceber de seu relato, há algumas amigas e até alguns amigos nesse tipo de relacionamento e eu não sei como chegar até eles, pois não posso chegar perto ou mandar uma mensagem se quer por que vão dizer que eu estou levando para o mal caminho, fora que eu já ouvi isso da boca do namorado de uma amiga, que hoje considero mais como colega ou uma conhecida apenas.
    Ana, você é uma pessoa MARAVILHOSA E DE BOM CORAÇÃO que sempre tenta ajudar todos de alguma maneira. Você é incrível, talentosa e linda.
    Não seja insegura com o que você faz, por que você é INCRÍVEL MEU, INCRIVEL.

    Beijos ??

  • Juliane

    Aninha, antes de mais nada: PARABÉNS!
    É muito difícil, primeiro aceitar, e ainda mais ter coragem de expor isso.
    Sei porque eu também já estive em um relacionamento abusivo e levei anos para entender, para aceitar e conseguir sair dele.
    Eu via vocês nas reuniões e percebia que tinha alguma coisa que não estava certa ali, mas não tínhamos intimidade suficiente e eu nem sabia nada sobre a relação de vocês então nunca cheguei a falar nada.
    Mas estou extremamente feliz em saber que você saiu daquele relacionamento e que está bem e melhorando.
    Se precisar de ajuda com alguma coisa, estou aqui!
    Beijos!

  • Mayara Anjos

    Queria Aninha, escrevo com os pés por estar aplaudindo com as mãos! !

    É necessário ter muita coragem para abrir o seu coração e escrever algo meio recente e que ainda pode doer. Eu tive um relacionamento abusivo com 18 anos, mas graças a Deus percebi que estava totalmente fora do controle e terminei com 3 meses de namoro. Na época eu terminei por causa das atitudes, mas não tinha ideia do quão abusivo o menino era.

    Infelizmente como você escreveu, nós estamos enraizados em absurdos, abusos e machismos, achamos normal. E quando vemos a realidade ficamos até chocados da sociedade achar isso normal ou condenar a pessoa que sofreu o abuso. O movimento feminista realmente tem aberto muito meus olhos e me ajudou a ver como já tive relacionamentos abusivos incluindo em amizades…

    Que você seja forte para espalhar sua história e transformar o sofrimento em alegria, com certeza a sua história pode abrir os olhos de muitas pessoas (assim como os meus foram abertos lendo relatos iguais aos seus). Mais uma vez: você é muito corajosa e querida, tenho certeza que você se sente muito mais leve agora que está livre!

  • Jamile

    Achei seu relato bastante emocionante. O movimento feminista é algo que abre os nossos olhos para muitas coisas. Conheço o movimento a quase um ano e posso dizer que ele também me ajudou. Hoje sei reconhecer um relacionamento abusivo e também me defender dele.
    Fico muito feliz mesmo que você tenha conseguido sair dele e que agora está livre para ser feliz e se amar.
    Muitas vezes a gente vê um relacionamento de fora e pensa "que lindos juntos" "casal perfeito", mas ninguém sabe o que se passa na realidade e muitas vezes não acredita quando a pessoa diz, porque o tal carinha parece ser tão educado, amoroso e respeitador que chega a ser impossível de acreditar que ele faz o que faz.
    É muito bom saber que você conseguiu expor isso à todas as suas leitoras e que isso talvez até possa ajudar alguém que esteja em um e não saiba.

    Beijos.

  • Ariani Martins

    Sabe o que é pior? É que você não está sozinha (o que torna as coisas mais fáceis).
    Nesse movimento feminista eu também recebi apoio indiretamente. E só indiretamente mesmo porque nunca falei nada. Aliás, eu só percebi que estava em um relacionamento abusivo quando já não estava mais nesse relacionamento e parei pra olhar pra trás.
    Descobri quando vi o vídeo da JoutJout, foi quando caiu a ficha que oq eu pensava estar errado estava errado mesmo. Também me culpava (e recebia a culpa) de coisas que aconteciam. Também era dependente e também tenho sequelas, basicamente as mesmas que citou, pedir desculpas por tudo, insegurança, não saber o que fazer quando recebo elogios e até mesmo achar que meu atual namorado está mentindo pra mim quando começa com esses elogios, sabe? Penso que não pode ser verdade, "será q sou tudo isso que ele fala mesmo?".

    Mas é bom ver que não estamos sozinhas, que outras conseguiram, e ajudar outras que não conseguiram ainda.

    Beeeeijos!

  • Talita Korb

    Tu é uma pessoa maravilhosa. Simplesmente maravilhosa. E tu não tem culpa de NADA. Nada. Nada.

    Tu não tem culpa por não ter terminado antes porque isso é muito difícil de aceitar. É muito difícil aceitar que a pessoa que você escolheu se relacionar está te fazendo sofrer, está te controlando. Por mais que lá no fundinho se saiba, é difícil aceitar. Mas eu fico muito feliz porque isso finalmente acabou e eu sei o quanto tu tá feliz agora com uma pessoa que te ama, que se importa contigo e que sabe que tu não é propriedade dele. Eu fico sinceramente feliz em te ver feliz, te ver livre, te ver vivendo da forma como tu sempre quis viver.

    É aquela coisa: tem gente que pode dizer que ama, que quer proteger e cuidar, mas acaba "saindo do armário" (eu sei que tu entendeu o trocadilho indireto) com essas atitudes e fazendo muito mal à quem está a sua volta.

    Toda, mas toda felicidade pra ti. E Victor, estou de olho em você, viu? Esteja avisado =P aheuaheuahue

    beijão <3

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